Brasil: As múltiplas faces da censura

A Repórteres sem Fronteiras (RSF) divulga a terceira parte de uma série de publicações trimestrais sobre a liberdade de imprensa no Brasil em 2020 e expõe os múltiplos mecanismos de censura indireta operados pelo governo Bolsonaro.

Diante das centenas de ataques proferidos não só pelo próprio presidente, mas também pelos seus aliados mais próximos somente neste ano, é seguro afirmar que a postura abertamente hostil à imprensa se tornou marca registrada do governo Bolsonaro. Para além das agressões a jornalistas e meios de comunicação, o governo também opera uma série de outros mecanismos de censura indireta, que impõe sérios obstáculos ao livre exercício do jornalismo.


Depois de analisar o caráter organizado e sistemático dos ataques do “sistema Bolsonaro”, a RSF expõe as outras facetas da pressão que o governo exerce contra a liberdade de imprensa. Fora as agressões, que criam um clima de desconfiança em relação à mídia; estão a desinformação e as restrições no fluxo de dados oficiais, com o objetivo de controlar o debate público; e a própria politização de órgãos oficiais de comunicação. Instrumentos que tornam o ambiente de trabalho dos jornalistas cada vez mais adverso e complexo. 


Para enriquecer esta terceira edição, a RSF entrevistou Bia Barbosa (diretora da organização Intervozes e membro do Comitê Gestor da Internet no Brasil), Bianca Santana (escritora, jornalista e ativista para a Coalizão Negra por Direitos) e Patrícia Campos Mello, repórter do jornal Folha de S. Paulo. Assista às íntegras das entrevistas de Barbosa, Santana e Campos Mello, e também à apresentação em vídeo preparadas pela RSF.


Total de ataques do "sistema Bolsonaro" contra a imprensa durante o terceiro trimestre de 2020 (dados RSF)



Os ataques repetidos do sistema Bolsonaro contra jornalistas e a imprensa continuaram no terceiro trimestre de 2020, durante o qual a RSF registrou pelo menos 27 casos partindo do Presidente Bolsonaro, um ligeiro aumento em relação ao segundo trimestre (21 casos). Os filhos do presidente com cargos eletivos foram, mais uma vez, responsáveis por ampliar esses ataques. Com 79 deles registrados no terceiro trimestre (contra 63 no segundo trimestre), Eduardo Bolsonaro, deputado federal, lidera o ranking com quase um ataque por dia. Ele é seguido por Carlos Bolsonaro, vereador da cidade do Rio de Janeiro, com 19 ataques (contra 44 no segundo trimestre), e pelo senador Flávio Bolsonaro, com 21 ataques (contra 47 no segundo trimestre).


Fora da esfera familiar, mas no seio do governo, Damares Alves, ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, é a mais hostil aos meios de comunicação, com 12 ataques neste terceiro trimestre (contra 4 no segundo trimestre). Damares é seguida pelo ministro da Cidadania Onyx Lorenzoni, com 7 ataques (contra 1 no segundo trimestre), e pelo ministro do Meio Ambiente Ricardo Sales, com 5 ataques (contra 2 no segundo trimestre). 


Acesse a nota metodológica da publicação e entenda como o monitoramento da RSF é feito.

 

Estigmatização, desinformação e a criação de um “inimigo comum”

 

 

Entre os ataques mais marcantes deste trimestre, o destaque fica para o ocorrido durante um deslocamento oficial em Brasília, no dia 23 de agosto. Constrangido por uma pergunta de um jornalista do grupo Globo sobre um dos casos de corrupção que rondam sua família, o presidente Bolsonaro respondeu: "Minha vontade é encher tua boca com uma porrada, tá!". Este episódio desencadeou uma onda de indignação no país, principalmente nas redes sociais, onde a pergunta feita pelo jornalista foi repetida mais de 1 milhão de vezes, inclusive em contas de personalidades e meios de comunicação.

 

Em 24 de agosto, o presidente chamou jornalistas de “bundões" e afirmou que, se contraíssem o novo coronavírus, teriam menos chance de sobreviver. No mesmo dia, ele usou sua conta no Twitter para acusar a jornalista Maria Júlia (Maju) Coutinho, apresentadora negra do grupo Globo, de ser mentirosa. Este ataque gerou uma explosão de ameaças e insultos misóginos e racistas contra a jornalista por partidários do presidente nas redes sociais. 

 

Em 22 de setembro, durante o seu discurso diante da Assembleia Geral da ONU, marcado, aliás, por inúmeras mentiras, o Presidente Bolsonaro acusou a imprensa - como já havia feito várias vezes em 2020 -, de “politizar o vírus (da Covid-19, nota do editor), para espalhar o pânico entre a população e causar o caos social no país”.

 

Para a jornalista Bianca Santana, que foi alvo de um dos ataques do presidente em 28 de maio de 2020, “É uma construção de narrativa que manipula uma sensação presente na sociedade, para dizer que a imprensa não é mesmo confiável, e aí eu não só mostro aquilo que tem de controverso na imprensa brasileira, mas eu crio, eu invento, eu acuso, eu ataco jornalista, eu incentivo que jornalistas sejam atacados, para acabar de vez com essa reputação, e eu não ter mais, no espaço público, as denúncias e os questionamentos". Para Santana, esses ataques “mudam nosso comportamento, e eles restringem as nossas liberdades. 


Esse discurso agressivo tem consequências para o trabalho dos jornalistas. Segundo a repórter Patrícia Campos Mello, “a gente percebe que tem uma parte da população que se tornou abertamente hostil à imprensa. A gente percebe isso quando vai entrevistar algumas pessoas, essa mensagem bombardeada pelo governo, várias vezes, de que a imprensa é fake news, a imprensa é comunista, etc, parte das pessoas acredita nisso. Então várias vezes, quando eu vou entrevistar algumas pessoas, as pessoas dizem assim: 'ah, mas você é daquele jornal', 'você é comunista', 'você é da imprensa'”. A própria jornalista também foi alvo de campanhas violentas de assédio e intimidação orquestradas pelo presidente e seus filhos. “Eu, por exemplo, como eles fizeram muitos memes que circulam com a minha cara, eu tenho evitado de cobrir manifestações. O que é um absurdo! A gente está num país que em tese não tem uma guerra, então é normal você cobrir manifestações democráticas”.


Um acesso cada vez mais limitado à informação

 

Como já noticiado no primeiro semestre do ano, jornalistas continuaram a ser bloqueados nas redes sociais por agentes do Estado, conforme detalha um relatório recente da Associação Brasileira de Defesa do Jornalismo Investigativo (Abraji). Alguns aliados do governo, como o ex-ministro da Educação Abraham Weintraub, gabam-se publicamente desses bloqueios.


As dificuldades da imprensa em obter informações das autoridades também estão aumentando.  Desde que assumiu o poder em janeiro de 2019, o governo de Jair Bolsonaro tomou pelo menos 13 medidas para reduzir o acesso à informação no país, conforme detalhado pela Folha de São Paulo.

 

Para Patrícia Campos Mello, “esse governo é um dos campeões em negativas de pedido de acesso à informação. Isso é muito importante para jornalistas, e eles dão oitocentas desculpas para não apresentar as respostas a pedidos de acesso. A transparência é muito pequena, é muito difícil conseguir informação sempre. Inclusive, não existe essa percepção dentro do governo de que é uma função do governo eleito pelo povo prestar contas para o público”.

 

A crise sanitária da Covid-19 apenas reforçou essa opacidade na gestão governamental. É o que indica, em particular, a análise da Transparência Internacional Brasil ao detalhar, estado a estado, o nível de transparência das autoridades no combate ao coronavírus.

 

Não prestar contas, ou mesmo obstruir diretamente o trabalho da imprensa sobre a pandemia: foi o que aconteceu no município do Rio de Janeiro no início de setembro, com o caso surrealista dos “guardiões do Crivella”, revelado pelo telejornal local RJ2, do grupo Globo. Através de grupos de WhatsApp, cujas listas incluíam o número de telefone do prefeito da cidade Marcelo Crivella (por sinal, amigo íntimo do presidente Bolsonaro), funcionários da gestão municipal organizavam plantões em frente a hospitais da cidade com o objetivo de evitar que jornalistas fizessem entrevistas e informassem sobre falhas no sistema de saúde.

 

Politização dos órgãos oficiais de comunicação

 

Em agosto, após realizar uma auditoria, o Tribunal de Contas da União (TCU) denunciou em um relatório a falta de transparência e de critérios técnicos na distribuição da publicidade oficial do governo federal, com destaque para o favoritismo concedido a canais de televisão próximos à linha oficial da Presidência, principalmente os canais dos grupos SBT e Record.


A distribuição dessas verbas publicitárias ficou a cargo da Secom, a Secretaria Especial de Comunicação Social da presidência, que foi alvo do TCU por sua gestão desequilibrada e opaca de tais recursos. Desde junho, a Secom faz parte do novo Ministério das Comunicações (o ministério havia sido extinguido em 2016, quando a pasta foi incorporada ao então Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. Sua recriação foi anunciada em junho e formalizada em setembro de 2020, nota do editor). A nomeação de Fábio Faria, genro de Sílvio Santos, dono do SBT e íntimo do presidente Bolsonaro, ao comando desse ministério é mais um motivo de preocupação: “a gente passa a ter um quadro em que o Ministério das Comunicações volta a ser moeda de troca política, com muito mais poder, porque agora você não tem só as licenças e as outorgas de radiodifusão para fazer relacionamento político, você passa a ter a publicidade toda do governo federal para fazer isso”, lamenta Bia Barbosa, do Intervozes.


A mesma Secom, que está na origem de pelo menos cinco ataques contra os meios de comunicação neste terceiro trimestre (com o uso da expressão “imprensa podre” e acusações infundadas de “fake news” contra veículos críticos ao executivo), e é regularmente acusada por sua falta de probidade e por fazer propaganda para o governo.


A ingerência de representantes do poder executivo também é notável na Empresa Brasil de Comunicação (EBC), responsável pelos principais canais de comunicação pública do país. Em setembro, uma comissão de funcionários da EBC e representantes de sindicatos de jornalistas e radialistas de diversos estados divulgaram um levantamento que trazia 138 denúncias de “censura ou governismo” em pautas e matérias da empresa realizadas de janeiro de 2019 a julho de 2020. O relatório aponta que as editorias mais censuradas foram Política e Direitos Humanos, com supressão de coberturas como as repercussões do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes e violação dos direitos indígenas, interdição de usar como fonte para matérias entidades como Anistia Internacional e Human Rights Watch e proteção excessiva a ministros e ao próprio Presidente da República, com edição de falas para minimizar a gravidade de declarações oficiais.


Segundo Bia Barbosa, a série de interferências feitas na gestão da EBC pelo governo federal tem por efeito limitar sua autonomia e independência. “Quando você tem, por exemplo, um repórter da Rádio Nacional, que é um dos veículos da EBC, fazendo questionamentos numa coletiva do Ministério da Saúde que podem colocar em uma situação constrangedora servidores do Ministério da Saúde, ou, no caso, um ministro, essas pessoas foram afastadas desse tipo de cobertura. Então você tem medidas muito claras, do ponto de vista da prática jornalística, sendo atingidas por decisão do Palácio do Planalto e por decisão do Governo Federal”.


Assédio judicial como mecanismo de censura

 

Por fim, um forte marco deste terceiro trimestre é o aumento de processos judiciais abusivos contra jornalistas e meios de comunicação brasileiros, em sua maioria movidos por representantes do Estado ou pessoas próximas à presidência.

 

Entre os casos mais significativos, em 28 de agosto de 2020, um juiz do estado do Rio impôs ao Jornal GGN e e aos jornalistas Patricia FaermannLuís Nassif, a retirada de 11 artigos sob pena de multa de dez mil reais. As reportagens levantavam suspeitas de irregularidades do banco BTG Pactual  - do qual o ministro da Economia Paulo Guedes é um dos fundadores -em licitação da Zona Azul de São Paulo e a participação do banco de capital aberto nos lucros obtidos dos investimentos de aposentadorias do sistema previdenciário do Chile. Alegando que a reportagem continha informações sigilosas, a justiça decidiu a favor da denúncia do BTG Pactual: os 11 artigos, apesar do recurso interposto por Luís Nassif, ainda estão censurados.

 

Já no dia 4 de setembro, a Justiça do Estado do Rio de Janeiro censurou uma série de relatórios da TV Globo sobre as investigações em andamento contra Flávio Bolsonaro, filho do presidente, suspeito de desvio de verbas públicas e corrupção quando era deputado no mesmo estado.

 

No mesmo dia, o jornalista Reinaldo Azevedo, colunista da Folha de S. Paulo e apresentador de rádio na BandNews FM, foi condenado a pagar uma indenização de trinta e cinco mil reais a Deltan Dallagnol, ex-promotor-chefe da extensa investigação anticorrupção Lava Jato (operação iniciada em 2014 sobre um caso de corrupção e lavagem de dinheiro que envolveu, sobretudo, a Petrobras, nota do editor), que o acusou de “crime contra a honra” após a publicação de um editorial.

 

Em 21 de setembro, constrangida por revelações de seu envolvimento em um caso controverso de aborto de menor, a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos,, Damares Alves, ameaçou, em sua conta pessoal no Twitter, o jornal Folha de São Paulo e o portal de notícias UOL de processos judiciais.

 

Nesse contexto, diante dessas novas formas de censura indireta, alimentadas por um clima extremamente marcado de polarização política, a imprensa brasileira tem muito a fazer e deve se reinventar para reconquistar a confiança da população. O desafio é imenso e não começou ontem. Certamente, será necessário responder a ele com mais jornalismo, e com mais jornalismo de qualidade, fortalecendo a independência e o pluralismo no país.

 

O Brasil ocupa a 107a posição no Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa de 2020, estabelecido pela RSF.


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Updated on 21.10.2020