Quase todos os indicadores vermelhos na América Latina
O Ranking Mundial da Liberdade de Imprensa da Repórteres sem Fronteiras (RSF) 2021 revela uma deterioração geral da situação na América Latina. Salvo raras exceções, o ambiente de trabalho dos jornalistas, já complexo e hostil antes da crise do coronavírus, piorou ainda mais.
A crise do coronavírus desempenhou um papel na aceleração da censura na América Latina e criou sérias dificuldades de acesso às informações sobre o manejo da epidemia pelos governos da região. Essas restrições resultaram em uma deterioração espetacular do indicador “Transparência”, que mede as dificuldades dos jornalistas no acesso à informação. A região Américas registrou também, este ano, a maior deterioração dos índices regionais (+2,5%).
No Brasil (111º, -4), o acesso aos números oficiais sobre a epidemia tornou-se extremamente complexo devido à falta de transparência do governo de Jair Bolsonaro, que tentou por todos os meios minimizar a escala da pandemia, gerando inúmeras tensões entre as autoridades e os meios de comunicação nacionais (ver box abaixo). Em El Salvador (82o, -8), país que registra uma das maiores quedas no Ranking de 2021, o trabalho dos jornalistas encarregados de cobrir a pandemia também está sendo muito dificultado: confisco de material jornalístico pela polícia, proibição de acesso a espaços públicos, falta de transparência no acesso às informações públicas, recusa de governantes em responder a perguntas sobre o coronavírus em coletivas de imprensa, ou mesmo proibição de entrevistas com representantes de Estado sobre o assunto.
Entre a negação e o desejo de colocar os meios de comunicação em quarentena
Práticas de obstrução semelhantes também foram observadas na Guatemala (116º), onde o presidente Alejandro Giammattei sugeriu “colocar os meios de comunicação em quarentena”, ou ainda no Equador (96º, +2). Diante da pandemia, a atitude de negação adotada por diversos dirigentes autoritários, como Daniel Ortega da Nicarágua (121o, -4), Juan Orlando Hernández de Honduras (151o, -3) e Nicolás Maduro na Venezuela (148º, -1), tornou a tarefa dos meios de comunicação especialmente difícil. Estes últimos aproveitaram a onda de choque causada pela crise para fortalecer seu arsenal de censura e complicar ainda mais o trabalho informativo da imprensa independente. Assim, os jornalistas foram publicamente acusados de superestimar a gravidade da crise sanitária e de semear o pânico na esfera pública. Aqueles que ousaram questionar a resposta oficial das autoridades para combater a pandemia foram detidos, acusados de cometer “terrorismo de desinformação” e, às vezes, presos, como o jornalista independente venezuelano Darvinson Rojas, que havia, em um tweet, questionado a credibilidade dos números oficiais.
Brasil (111o, -4): Um ambiente tóxico para a imprensa
Depois de cair duas posições no ano passado, o Brasil caiu mais quatro posições e entrou na zona vermelha do Ranking, que sinaliza um país onde a situação da imprensa é considerada difícil. O ambiente tóxico no qual os profissionais da mídia brasileira trabalham desde que Jair Bolsonaro chegou ao poder em 2018 explica em grande parte essa deterioração. Insultos, estigmatização e orquestração de humilhações públicas de jornalistas se tornaram a marca registrada do presidente, sua família e sua entourage. Esses ataques dobraram de intensidade desde o início da pandemia de coronavírus. Para desviar a atenção de sua gestão desastrosa da crise sanitária, que já deixou mais de 318 mil mortos*, Jair Bolsonaro acusa a imprensa de ser a responsável pelo caos no país. Além disso, o presidente contribuiu para disseminar informações falsas (por exemplo, sobre o uso de Ivermectina, vermífugo cuja eficácia no combate ao coronavírus nunca foi comprovada e que foi desaconselhado pela OMS), criticou medidas de isolamento social e causou aglomerações, desrespeitando as medidas sanitárias, o que fez com que fosse censurado pelo Facebook e pelo Twitter. Diante das mentiras compulsivas do presidente e da falta de transparência do governo quanto à gestão sanitária, uma aliança inédita reunindo os principais meios de comunicação do país foi criada em junho de 2020, com o objetivo de obter informações diretamente de autoridades locais nos 26 estados do país e no Distrito Federal, para elaborar e comunicar seus próprios boletins.
* Em 31 de março de 2021.
A retórica antimídia da classe política
Em todo o continente, os jornalistas continuam seu trabalho de informar em um ambiente cada vez mais nocivo e tóxico. A desconfiança com relação à imprensa é alimentada pela retórica antimídia da classe política latino-americana, cada vez mais virulenta. No Brasil e em El Salvador, mas especialmente na Nicarágua e na Venezuela, onde a imprensa independente está morrendo, os jornalistas são chamados de “inimigos do povo”. Mesma história em Cuba (171º), que permanece presa nas profundezas do Ranking e onde a imprensa independente, que não tem reconhecimento legal - a imprensa privada ainda é proibida pela Constituição -, só pode existir por meio da Internet. No México (143o), que continua a ser um dos países mais letais do mundo para a imprensa, o presidente López Obrador segue estigmatizando os jornalistas em suas coletivas de imprensa matinais, sempre que são publicadas informações contrárias a seus interesses.
Uma ameaça multifacetada
A banalização desses discursos estigmatizantes enfraquece a profissão e gera ataques cada vez mais multifacetados e violentos contra os meios de comunicação. A RSF observou um aumento de procedimentos jurídicos abusivos contra a imprensa, geralmente iniciados por políticos ou representantes do Estado, em países como Peru (91º, -1), Argentina (69º, -5) ou mesmo Brasil e Nicarágua.
O aumento das campanhas online de difamação, intimidação e assédio contra jornalistas, sejam elas promovidas por figuras públicas ou gabinetes ocultos, também é uma tendência forte na região, sobretudo na Colômbia (134º, -4) e no Brasil. E os principais alvos desses ataques coordenados geralmente são mulheres jornalistas.
Longe de ter diminuído, a violência física contra jornalistas e comunicadores (o termo “comunicador” abrange jornalistas independentes, blogueiros, etc., que não estão ligados à grande mídia nacional) contribuiu para uma deterioração adicional de 15% do indicador Abusos do Ranking. No Haiti (87º, -4) ou no Chile (54º, -3), cobrir protestos tornou-se uma atividade extremamente perigosa. No México, em Honduras e na Colômbia, 13 jornalistas, a maioria dos quais investigando corrupção e crime organizado, pagaram com a própria vida em 2020. A impunidade para crimes contra jornalistas continua alimentando um ciclo vicioso de violência na região.
Sofrendo com um arcabouço legislativo pouco protetor e com a crise econômica gerada pela pandemia, a imprensa independente enfrenta desafios gigantescos e ainda precisa restaurar a confiança do público no jornalismo de qualidade. Nesse clima difícil, é justamente o trabalho jornalístico que tem permitido rebater as falsas informações veiculadas pelas autoridades sobre as origens da pandemia ou as soluções para enfrentar a crise sanitária. É o caso da Venezuela e do Brasil, onde os presidentes Maduro e Bolsonaro promoveram, respectivamente, nas redes sociais e em campanhas de comunicação pública, medicamentos (Carvativir e cloroquina) cuja eficácia contra a Covid-19 nunca foi comprovada pelo mundo médico. Em ambos os casos, pesquisas ou artigos verificados, publicados especialmente pela Agência Pública, no Brasil, ou por El Estímulo e Efecto Cocuyo, que estão entre os últimos jornais independentes da Venezuela, chamam a atenção para os perigos dessas campanhas para a população e, por outro lado, para a importância de informações confiáveis no combate efetivo à epidemia.
um prognóstico dúbio para a liberdade de imprensa na América do Norte
Apesar dos avanços em termos de liberdade de imprensa na América do Norte - sobretudo no Canadá, que subiu duas posições, ocupando o 14o lugar, e nos Estados Unidos, que subiram uma e agora estão em 44o, a edição 2021 do Ranking envia sinais preocupantes.
Embora todos os países da região tenham superado desafios, a crise da Covid-19 revelou que nenhum deles está vacinado contra o vírus da desinformação. Mas é certamente nos Estados Unidos, onde alguns meios de comunicação divulgaram notícias falsas sobre o vírus enquanto outros os denunciavam, onde dezenas de milhões de pessoas foram infectadas e o coronavírus deixou mais de 350 mil mortos em 2020, que a situação foi mais flagrante, a tal ponto que o país pode se orgulhar de estar no topo da triste lista mundial de vidas perdidas na pandemia.
Sem imunidade contra a desinformação
Conforme relatado pelo #Observatório_19, ferramenta online desenvolvida pela RSF para acompanhar a crise sanitária, as coletivas de imprensa diárias televisionadas da Casa Branca - supostamente para manter os jornalistas e o público informados sobre a situação, o número de testes e internações - se transformaram muitas vezes em um circo midiático, tendo no centro o então presidente Donald Trump, proferindo insultos aos jornalistas e contradizendo as recomendações de médicos especialistas de seu próprio governo.
Mesmo no Canadá, que merece elogios por ter sido pró-ativo em termos de liberdade de imprensa dentro e fora do país, alguns meios de comunicação foram apontados por terem disseminado estereótipos e comentários depreciativos sobre grupos indígenas que relutavam em se vacinar. Esse tipo de jornalismo clichê e sensacionalista só alimenta visões historicamente falsas e negativas dos povos originários - no Canadá, mas também nos Estados Unidos. O coronavírus, portanto, ressaltou um problema recorrente na América do Norte, onde os meios de comunicação influenciam as percepções e criam preconceitos sobre povos indígenas.
Em outro país da região, a Jamaica (7º, -1), as autoridades foram acusadas de usar restrições ligadas ao confinamento para impedir o trabalho dos jornalistas. Comentários feitos pelo primeiro-ministro da Jamaica, Andrew Holness, no final de 2019, dizendo que jornalistas não tinham a obrigação de se ater aos fatos, também geraram desconforto. Nos países membros da Organização dos Estados do Caribe Oriental (OECO, 45o, -1) e na Guiana (51o, -2), a influência que políticos podem exercer sobre os veículos foi considerada uma ameaça à integridade editorial da imprensa. Quanto ao país que mais avançou nessa região, Trinidad e Tobago (31o, +5), a melhora deve-se principalmente a uma importante decisão da Suprema Corte em favor da proteção das fontes jornalísticas, que pode vir a ter um impacto significativo no Caribe.
Um ano violento para os jornalistas nos Estados Unidos
O indicador mais alarmante em termos de liberdade de imprensa na América do Norte é, sem dúvida, o número sem precedentes de prisões, agressões e violências contra profissionais da mídia durante os protestos anti-racismo que se seguiram à morte de George Floyd sob custódia de policiais, em meados de 2020. O nível de violência atingiu tal ponto que a US Press Freedom Tracker, organização parceira da RSF, considerou que a liberdade de imprensa nos Estados Unidos estava "em crise". As agressões foram cometidas por policiais, membros autodeclarados de milícias e de grupos anti-protestos, e envolveram uma ampla gama de meios: tiros com balas de borracha, spray de pimenta, ameaças verbais, assédio, destruição e confisco de materiais.
A violência que caracterizou os Estados Unidos durante grande parte de 2020 atingiu seu auge durante a invasão do Capitólio, em Washington, no dia 6 de janeiro de 2021. A invasão, que pretendia impedir a confirmação da vitória eleitoral de Joe Biden, levou à remoção imediata de Donald Trump de plataformas digitais como o Twitter. O acontecimento, ocorrido após quatro anos de crescentes distorções de fatos pelo ex-presidente nas redes sociais, gerou sérias preocupações entre os defensores da liberdade de imprensa quanto ao papel desproporcional de árbitros privados da verdade exercido pelas grandes empresas de tecnologia. A RSF pediu, então, que os principais players digitais devessem passar a responder por obrigações democráticas na moderação de conteúdo, sobretudo por meio de um processo de controle e equilíbrio baseado na transparência e na possibilidade de se recorrer de decisões - como a suspensão do perfil de determinadas figuras públicas.
Tratar os sintomas não significa curar
A chegada do governo Biden trouxe mudanças positivas na maneira como os jornalistas são tratados nos Estados Unidos: eles deixaram de ser difamados publicamente pela Casa Branca ou constantemente acusados de disseminar "fake news". No entanto, como acontece com qualquer paciente, embora os sintomas mais gritantes de uma democracia em dificuldade tenham sido debelados, muitas doenças crônicas subjacentes permanecem. Por exemplo, a maioria dos Republicanos continua a acreditar que a eleição presidencial de 2020 foi roubada e que, portanto, não é válida.
Na verdade, após o ataque ao Capitólio e pela primeira vez na história, menos da metade dos americanos entrevistados pelo Edelman Trust Barometer 2021 afirmou que confiava na chamada grande mídia. E 56% deles concordaram com a afirmação de que "jornalistas e repórteres tentam deliberadamente enganar o público, afirmando fatos que sabem ser falsos ou exagerando de forma grosseira".
A politização percebida - e por vezes muito real - e a polarização ideológica da informação são razões para essa desconfiança crescente. Embora um eleitorado informado seja pré-requisito para o bom funcionamento das democracias, tais tendências não são um bom presságio para a saúde e a longevidade de um jornalismo digno de confiança nos Estados Unidos.